se os chinelos do ditador falassem...

5 de março de 2010

O ditador hoje voltou a sonhar, e no sonho andava à roda roda, de túnica branca, numa sala branca com a tinta a cair com janelas e luz branca a passar por elas e andava à roda, e o tecto era branco e vermelho, com salpicos vermelhos. E o ditador andava à roda, e a túnica insuflava e criava um tornado e a tinta das paredes começou a voar e a colar-se às paredes e o vermelho do tecto começou a cair num voo dinâmico e a aglomerar-se num corpo e o ditador rodava, a cabeça caída para o lado os braços abertos e estendidos para o lado e girava, girava, girava e criava um tornado ao girar. E o tempo voltava para trás e a sala cheirava a novo e o sangue criava um circuito continuo que começava e acabava num só ponto do espaço limitado pelo infinito da luz da sala e trocava de vasos para veias para artérias para veias para vasos nesse ponto e nesse ponto pulsava e subia e descia pelo corpo todo e o corpo de sangue e o ditador giravam. E dançavam. E o corpo e o ditador começaram a dançar e valsavam a mais pura das valsas e selaram a valsa num beijo de sangue e saliva e suor e loucura e o ditador estava agora nu num vácuo negro como o outro lado do universo. E ao fundo estrelas, não, pontos brancos luzidios, não pontos brancos baços, não estruturas brancas amareladas, não ossos, não esqueletos, esqueletos inteiros, esqueletos às partes, partes de esqueletos e partes inteiras de esqueletos e esqueletos inteiramente às partes e o ditador girava girava e girava e continuava a criar o tornado. E os esqueletos foram engolidos pelo tornado e giravam à roda do ditador numa dança frenética tribal e o ditador era o único ponto de luz. E os ossos estalavam. E ao estalar criavam um ritmo tétrico e canibal, e batiam os dentes. E o ditador começou a cair e a cair e a cair e caía no negro e o sempre a rodar caía. E ganhou velocidade. E caía, caía, caía. E parou na água, mas não era água, era frio como água do mar do norte, e doce como água de nascente, mas negro como o vácuo. E o ditador parou aí caído, sobre a ilharga, caído, de lado, caído, nu, caído. E o líquido negro começou a absorvê-lo e queimava, o frio queimava e havia espinhos que rasgavam a pele e a carne e o sangue saía e jorrava e caía numa tela branca, mas não era uma tela branca, era chão, mas não era chão. E a imagem rodou, e o ditador emergia do chão branco e o sangue subia em salpicos para o que afinal era o tecto branco da sala branca e a tinta branca do chão cobria o ditador com uma túnica imaculada que não se tingia com o sangue, e o ditador ficava cada vez mais pálido. E o ditador levantou-se e começou a andar à roda. Numa sala branca com a tinta a cair com janelas e luz branca a passar por elas e andava à roda, e o tecto era branco e vermelho, com salpicos vermelhos.

Sem comentários:

Seguidores